Futuro das constituições está na democracia participativa
Opinião ENTREVISTA - PAULO BONAVIDES (31/8/2008)
Fonte: http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=568278Duas décadas se passaram e a sétima Constituição a reger o Brasil continua a garantir os direitos individuais e coletivos da nação. Para o jurista e professor Paulo Bonavides, o que se deve comemorar neste aniversário de promulgação é a estabilidade do dispositivo jurídico. ´Vivemos um ciclo de serenidade política, demonstrativo do processo de maturação institucional em curso´, afirma. Bonavides é um dos homenageados especiais do Congresso Jurídico Brasil 2008. Em sua segunda edição, o evento acontece entre os dias 3 e 5 de setembro, em Fortaleza
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Passados 20 anos da promulgação da Carta de 1988, que avaliação o senhor faz do papel da Constituição no exercício da cidadania e na prática democrática brasileira atualmente?
Nunca na história constitucional do período republicano uma Carta Magna teve ocasião de celebrar vinte anos de vigência com um grau de estabilidade comparável ao da Constituição-cidadã de Ulisses Guimarães. Nem estados de sítio, nem intervenções federais, nem golpes de Estado. Vivemos um ciclo de serenidade política, demonstrativo do processo de maturação institucional em curso, deveras promissor no que toca à consolidação democrática do regime.
Há críticos do texto constitucional sustentando que o diploma trata de temas próprios de legislação infraconstitucional, o que impediria seu fiel cumprimento. Outros alegam que a extensão de direitos foi tamanha a ponto de sobrecarregar o Estado em suas obrigações. Que considerações o senhor faria acerca desses posicionamentos?
São críticas, a meu ver, exageradas, que partem de círculos de opinião desde muito hostis à Constituição. Em geral, as cartas promulgadas em países recém-egressos de ditaduras prolongadas, habitualmente ostentam uma prolixidade que abriga excesso de matérias de menor importância, postas na Lei Fundamental, para auferir a proteção maior que a rigidez constitucional lhes confere.
Em 2008, o Poder Judiciário completa 200 anos de independência. Que avaliação o senhor faz acerca do papel desse poder no Brasil atualmente?
Em recente artigo estampado na Folha de São Paulo mostrei que D. João VI, o fundador dos 200 anos de criação e independência do Poder Judiciário no Brasil, fora o precursor da monarquia constitucional em nosso país quando, às vésperas de seu retorno a Portugal, lavrara o decreto, logo revogado, de convocação de uma junta de Procuradores, que funcionaria como uma espécie de constituinte embrionária para o Reino do Brasil, com abrangência dos Açores, Canárias e Cabo Verde. O ato, por inspiração de Palmela, grande estadista liberal, foi abortado por oposição militar da guarnição portuguesa do Rio de Janeiro, que viu ali o germe separatista de ruptura dos dois reinos e decidiu manter-se fiel às Cartas de Lisboa. Mas sua inquirição se prende menos à ancianidade dos três Poderes da soberania, que ao papel representado pelo Poder Judiciário no Brasil contemporâneo. E esse papel só se compreende melhor em ligeira remissão ao passado, quero dizer, ao advento da República e principalmente à influência que Rui Barbosa teve com o seu magistério constitucional vinculando o Judiciário, como nos Estados Unidos, à guarda e defesa da Constituição. Foi ele o introdutor, entre nós, do controle difuso de constitucionalidade, até chegarmos à forma mista, mediante o desenvolvimento posterior do controle concentrado; o primeiro de origem americana, desde Marshall, o segundo de procedência européia, desde Kelsen e a fundação das Cortes Constitucionais do século XX. A Constituição de 1988 deu largos passos nessa última direção, fortalecendo o controle concentrado. Ambos fizeram o Supremo produzir uma jurisprudência em que avulta e prepondera sua função de guarda da Constituição, por isso mesmo de tribunal constitucional, que, formalmente ele desde muito já devera ter sido, investindo-se exclusivamente no exercício das atribuições ínsito às Cortes Constitucionais. Do ponto de vista material, no ciclo de nossa evolução constitucional, a partir da Carta de 1988, o nosso Supremo, em verdade, tem sido Tribunal Constitucional, colégio legislador de primeiro grau, espécie de constituinte de plantão. Porquanto, ao dizer o que é a Constituição, em certa maneira, não raro está a legislar com mais rapidez, aliás, que as duas casas do Congresso, podendo a esse respeito, rivalizar com o Executivo, na velocidade com que este expede medidas provisórias. Mas a decadência congressual e executiva é tamanha no país pelas increpações de corrupção e por escândalos que cercam tanto o Legislativo como o Executivo, que estes dois Poderes, dado que tenham origens mais democráticas de legitimidade que o Supremo Tribunal Federal, perderam, todavia, em decorrência portanto de razões morais, maior parcela de credibilidade que a “constituinte togada”. A meu ver, enquanto não se fizer mais legítima, mais autêntica, mais democrática a ação governativa do Executivo e do Legislativo, o que unicamente se obterá com o cidadão governante da democracia participativa no topo do exercício efetivo da soberania, o regime estará mais bem protegido e resguardado com os arestos legislativos dos ministros do Supremo. Essa substituição de papéis é a certidão da crise constituinte do Brasil, que nenhuma das nossas Constituições, nem a de 1988, a melhor de todas até agora, pôde resolver.
A teoria dos direitos fundamentais desenvolvidos em gerações foi elaborada pelo senhor, com acatamento acadêmico internacional. Como o Brasil se coloca diante desse contexto? É possível a realização de tais direitos num país de dimensões continentais?
O ponto de destaque donde deriva a superioridade e o avanço da Carta de 1988, sobre quantas a antecederam, desde o império até aos nossos dias, jaz na declaração de direitos fundamentais da primeira e da segunda gerações, direitos civis e políticos e direitos sociais, constantes, respectivamente, dos artigos 5º e 6º da Carta Magna. Não se trata apenas de meros enunciados, mas de um discurso programático, de direito, de eficácia, validade e aplicabilidade, rodeados de garantias constitucionais; direitos fundamentais acima de tudo, de substrato e natureza principiológica. O revestimento principiológico da Carta culmina com princípios que representam a revolução da normatividade das Constituições, e as fizeram passar decisivamente num definitivo avanço da teoria do patamar político para o patamar jurídico. As constituições já não se inclinam simplesmente a distribuir competências e organizar poderes, mas de preferência a concretizar direitos humanos fundamentais e a fazer mais sólidas as garantias constitucionais desses direitos. Este, poder-se-á dizer, é o constitucionalismo de última geração, que ultrapassou, por inteiro, o da velha escola liberal.
De que maneira os mecanismos de democracia direta, como iniciativas populares, plebiscitos e referendos, podem interferir na vida do cidadão e que papel teria a mídia nesse cenário?
A meu parecer, o futuro da Constituição pertence ao Estado Social da democracia participativa. É ele que escreverá os capítulos vindouros do Estado de Direito dos países da periferia. Essa tarefa se cumprirá por via e emprego freqüente dos institutos da democracia direta, aquela que fará com os plebiscitos, os referendos, as iniciativas populares, os vetos e as revogações de mandato legislativo, o futuro das Constituições. Estamos atravessando um grande momento histórico em que a decadência do corpo representativo nas duas Casas do Congresso Nacional faz prever breve a ascensão hegemônica da democracia do cidadão participativo. Esse é o caminho para evitar a tragédia das ressurreições golpistas, do povo oprimido e reprimido, das ditaduras que paralisaram por duas décadas o relógio da democracia, afastando da cena política a mocidade, destruindo-lhe a vocação para o exercício legítimo do poder. As lideranças minguaram e até hoje pagamos a fatura dessa dívida que o povo não contraiu.
O que o senhor pensa do constitucionalismo baseado em princípios? Os magistrados, advogados e promotores estariam preparados para essa prática na jurisdição?
A enorme dificuldade de estabelecer um constitucionalismo de emancipação nacional, fundado na flexibilidade fecunda dos princípios que, bem aplicados, têm a chave de todos os nossos conflitos, crises e problemas, deriva do despreparo da magistratura, a qual não se capacitou ainda, da importância superlativa que tem o direito constitucional em sua formação e no exercício da função judicante, em sua formação. É imperativo o estudo e o saber atualizado, para fazer justiça numa sociedade cada vez mais complexa e problemática, que somente pode ser governada com legitimidade, se formos fiéis e leais à Constituição. Esse é o maior dever que impende a juízes, advogados, procuradores, defensores públicos, etc. As escolas da magistratura têm por tarefa mais urgente a educação constitucional do juiz, volvida para a formação de uma consciência principiológica, na aplicação do direito. Se falharem nessa missão pedagógica, não haverá maior predador futuro da Constituição que o magistrado das regras, o juiz da idade hegemônica do jusprivatismo, das estreitezas do positivismo jurídico, enfim, o juiz inanimado que a história embalsamou nos duzentos anos do Código de Napoleão. O princípio é vida; a regra, que o contravém, é decrepitude.
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